O Razoável Homem-Aranha
Gustavo Nazo
08 de julho de 2012
A beleza da história, criada por Stan Lee e Steve Ditko no início da década de 1960, basicamente se resume no fato de que um nerd, extremamente impopular no colégio, é subitamente embuído de certos poderes
que lhe transformam a vida por acaso, mas não necessariamente de uma
maneira positiva.
Ao ser amaldiçoado com
grandes poderes, Peter recebe também sua lição de grandes responsabilidades - e passa a ter que equilibrar sua vida pessoal com o seu alter-ego, o Homem-Aranha,
prejudicando ambas as identidades. Não estuda direito, não é um
herói direito, não tem dinheiro, mas adquire confiança buscando um futuro melhor não
apenas para si, mas para o mundo em que está inserido. Esse Peter Parker, um personagem que resiste ao teste do tempo sem grandes alterações há 50 anos.
Em O Espetacular Homem-Aranha,
atualização do personagem para os cinemas, Peter Parker não é uma
vítima, mas um herói desde o início. A ideia parece boa a princípio,
mas se analisada diminui o conceito de quem é e como foi criado o
personagem nos quadrinhos. Parker, na pele de Andrew Garfield,
não tem nada de desajeitado: ele anda de skate, usa lentes de contato e
enfrenta valentões de peito aberto, e ao receber seus poderes, a única
mudança é que ele efetivamente consegue derrubá-los. Essa ideia acaba roubando
do personagem sua premissa básica, na qual Peter nunca desejou tais poderes e precisa,
diariamente, lutar para alcançar o homem em que foi transformado. O
novo Peter Parker precisava desses poderes. A diferença sutil é
fundamental para que entendamos o quão genérica é esta nova versão do
herói.
Focando-se somente no filme, deixando de lado o grande fã de longa data, a experiência que se tem no começo do longa é até agradável. Andrew Garfield, Emma Stone e Martin Sheen
são fisicamente (apesar da idade 10 anos maior do casal protagonista
que a que representam) e em tom escolhas excepcionais para os papeis de
Peter, Gwen Stacy e Tio Ben. As interações entre eles são ótimas - e
só melhoram na direção de Marc Webb (500 Dias Com Ela),
que sabe muito bem como extrair atuações honestas desse tipo de
cenas de intimidade. Mesmo que o romance se desenvolva de maneira meio
estranha depois do excelente primeiro convite para encontro
(basicamente, os dois vão do "que tal sairmos?" para um
jantar com a família, sem escalas), a relação é tão bem atuada que esse ato do filme
soa honesto e dá vontade de ver denovo. Apenas a Tia May de Sally Field está um tanto apagada, em parte devido ao foco no Tio Ben.
Mesmo que não sejam exatamente os que já conhecemos das HQs e da
última trilogia - recente demais na memória para ser refutada por um reboot -, os personagens são ótimos! Mas o roteiro remendado de Alvin Sargent, James Vanderbilt e Steve Kloves
exige uma carga extra de suspensão de descrença (maior do que
acreditar que alguém vira uma aranha-humana ao ser picado) quando
entram os elemento super-heróicos. A ciência, afinal, tem seus
mistérios - e é poético e inspirador imaginar o que não sabemos, o
que existe além da próxima esquina -, mas não dá pra aceitar que Gwen
Stacy, uma mera estudante colegial de 17 anos, por mais brilhante que
seja (e não vemos provas desse brilhantismo em momento algum, isso é um fato!), seja
uma superestagiária-chefe em um dos maiores laboratórios de pesquisa
do mundo, cheia de responsabilidades que serão a chave para a
resolução da trama. A história, portanto, depende demais de
coincidências convenientes para se manter em pé. Veja só: o pai de
Peter está relacionado ao cientista Curt Connors, que por sua vez é
chefe de Gwen Stacy, que estuda na mesma classe de Peter, que
encontra a pasta de seu pai que contém documentos indispensáveis à
pesquisa de Connors, na qual Gwen trabalha ativamente.
Essas escolhas em parte parecem motivadas pela necessidade de criar uma trilogia que tente imitar, emular o sucesso de Batman Begins de
Christopher Nolan, em que o processo de desenvolvimento do herói
está relacionado aos seus futuros inimigos. Diferente do filme da
Warner, porém, em que essa trama funciona - pela natureza do próprio
personagem - aqui parece tudo muito forçado.
A escolha do vilão, vivido por Rhys Ifans, no
entanto, é boa. Na trilogia de Sam Raimi, o Doutor Curt Connors já
havia aparecido duas vezes, mas sempre numa promessa de tornar-se o
vilão do filme seguinte. Agora, surge diferente dos quadrinhos (sem a
sua família, algo fundamental para suas motivações nas HQs) e mais
inteligente, falador até. Ainda que em algumas HQs o bicho retenha
inteligência, ele destacou-se sempre como um fera enlouquecida.
Essa necessidade de recontar a origem - uma das mais inexplicáveis
motivações do cinema recente, sendo que ela já foi contada há dez anos
na mesma mídia e o filme passa com frequência em canais abertos e
públicos - é problemática. Por que não começar o filme no colegial, com
Peter já transformado? O público é tão burro assim que precisa de tudo
explicadinho desde o início todas as vezes??? Além de parecer
desnecessária, essa ideia está muito mais preocupada em mudar o que já
está estabelecido do que em mostrar uma história de como o Aranha
tornou-se o Aranha.
O fato de que a história de origem dos pais do personagem, com uma
rara e lamentável exceção rapidamente ignorada pelos leitores, nunca
foi foco nas HQs, ajuda também no esvaziamento de importâncias na
trama. O Tio Ben sempre foi a figura paterna de Peter, posição que o
pai biológico jamais ocupou. Ao insistir na trama da busca das
origens, o filme tira a força da relação de ambos, que é dramática
para o entendimento das motivações do herói. Felizmente, Martin Sheen
está ali para segurar a barra com sua presença e impedir que esse
esvaziamento efetivamente ocorra.
Ao menos, na edição final, O Espetacular Homem-Aranha - que
passou por inúmeras refilmagens - tenta minimizar um pouco as
alterações em relação ao que elas pareciam ser se observadas todas as
cenas e fotos divulgadas do filme e que não estão na versão de
cinema. O Doutor Ratha, personagem que desaparece sem explicação
depois da cena da ponte, por exemplo, em um dos trailers pergunta a
Peter "você acha que o que aconteceu com você, Peter, foi um acidente? Você tem alguma ideia do que realmente é?", sugerindo que o personagem seria uma cobaia do pai. Essa linha dramática,
da busca do pai e a "verdade sobre ele", é descaradamente deixada sem
resolução (assim como a do ladrão da estrela no pulso), como um
gancho para o próximo filme, sem qualquer sensação de conclusão. Se
levarmos em conta a cena pós-créditos, parece que essa ideia
lamentável, uma tentativa óbvia de aproximar Peter Parker de outros
"garotos que descobrem que estão destinados a coisas maiores" de
franquias cinematográficas ainda voltará... mas é cedo para reclamar.
Outros momentos dignos de nota, ignorados nos filmes de Sam Raimi, também são deixados de lado aqui. Enquanto em Batman Begins, uma das musas inspiradoras de O Espetacular Homem-Aranha, Bruce Wayne tem como obstáculos a criação de seu uniforme e aparelhos, aqui a produção opta por takes
velozes dando apenas vislumbres de Peter Parker costurando sua roupa
e construindo seu lançador de teias (o fluido de teia ele compra na Amazon...
algo que não consigo nem comentar de desgosto e que é ainda pior que
teias orgânicas, pode isso?). Enfim, trata-se de um filme de origem
despreocupado com o "como" e mais interessado nos "porquês" (Por que
ele se transforma? Porque já era um herói interiormente, porque
procura seu pai, por causa de sua herança genética...)
Tecnicamente, porém, é uma produção de primeira e competentíssima, toda filmada em
3-D (as cenas noturnas, um problema do formato, são bastante nítidas)
e que busca usar a técnica de maneiras pouco vistas no cinema
estereoscópico, como em sequências em primeira pessoa (pena que a
música não acompanhe... a trilha sonora de James Horner
foge à memória no instante em que o filme acaba). Nesse sentido, o
resultado é ótimo e a ação empolga em vários momentos, com a
caracterização do personagem em termos físicos mais fiel aos
quadrinhos já vista nas telas. O herói se balança com leveza,
assumindo posições e saltos típicos das HQs, um equilíbrio decente e
satisfatório para a mal-desenvolvida história.
Enfim, Marc Webb fez um bom trabalho com o texto que lhe foi dado
pelos produtores, pena que esse roteiro não esteja à altura do legado
do personagem tanto nos quadrinhos, como no cinema. Se os produtores
erraram ao forçar demais a mão em Homem-Aranha 3, arrancando
de Sam Raimi sua liberdade criativa, e o perderam ao tentar fazê-lo
mudar de ideia quanto aos vilões e o tipo de filme que Homem-Aranha 4
deveria ser, aqui erram com a mesma intensidade. Se tivesse este mesmo
visual e técnicas e contasse com um roteiro menos preocupado em
afastar-se do estabelecido, em direção a uma franquia inédita pelo
ineditismo, que fosse mais interessado em apresentar uma história
centrada, com começo, meio e fim, o novo Homem-Aranha seria realmente
Espetacular. Como foi apresentado, talvez devesse ser rebatizado O Razoável Homem-Aranha.
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